quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Nomes de artistas que colaboraram com a ditadura são revelados em documento


Documentos da ditadura revelam nomes de colaboradores do regime no meio artístico. São citados Roberto Carlos, Agnaldo Timóteo, entre outros

roberto carlos ditadura militar
A relação do hoje ‘rei’ Roberto Carlos com generais foi sempre amistosa

MINISTÉRIO DO EXÉRCITO
GABINETE DO MINISTRO
CIE/GB
ENCAMINHAMENTO 71/s-103.2.cie
FUNDO “DIVISÃO DE CENSURA DE DIVERSÕES PÚBLICAS”, ARQUIVO NACIONAL,
COORDENAÇÃO REGIONAL DO ARQUIVO NACIONAL NO DISTRITO FEDERAL, SÉRIE
“CORRESPONDÊNCIA OFICIAL”, SUBSÉRIE “INFORMAÇÕES SIGILOSAS”, CAIXA ÚNICA
Acervo Arquivo Nacional – COREG

Durante a ditadura militar no Brasil, alguns artistas viraram colaboradores do regime – seja por simpatizarem com os governos militares ou por pura covardia – passando informações sobre o que acontecia no meio artístico e participando de atos realizados nos quarteis.

No documento em anexo produzido pelo Centro de Informações do Exército (CIE), classificado como informe interno e confidencial, o CIE reclama que alguns veículos intitulados pelos militares de “imprensa marrom” (tal qual O Pasquim) estariam fazendo campanhas contra alguns artistas amigos e colaboradores da ditadura.

O informe difundido para outros órgãos da repressão política sugere que esses artistas “amigos da ditadura” sejam blindados, protegidos.

(Vídeo) Roberto Carlos mostra sua consideração ao ditador chileno Augusto Pinochet


http://www.youtube.com/watch?v=SpdjnkyOjXI&feature=player_embedded


No documento emitido pelo Centro de Informações do Exército são revelados alguns desses “colaboradores”, considerados pelos militares como amigos, aliados do regime

Segundo o documento, certos órgãos de imprensa estariam publicando matérias denegrindo a imagem de determinados artistas que se “uniram à revolução (sic) de 1964 no combate à subversão e outros que estiveram sempre dispostos a uma efetiva colaboração com o governo”.

São citados Wilson Simonal, Roberto Carlos, Agnaldo Timóteo, Clara Nunes, Wanderley Cardoso e Rosemary.

Clique nos links ao lado para ler os documentos. (Link 1 / Link 2)

1) http://pt.scribd.com/doc/104622606/documento-emitido-pela-ditadura-revela-os-delatores-do-meio-artistico2

2) http://pt.scribd.com/doc/104622608/Documento-emitido-pela-ditadura-revela-os-delatores-do-meio-artistico 

Fonte: Pragmatismo Político, 28/12/12, disponível em: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2012/12/envolvimento-artistas-ditadura-militar.html

Boaventura de Sousa Santos: "A sociologia da prepotência"


Nosso comentário:

Muito bom, muito bom mesmo, o artigo do jornalista Plínio Bortolloti publicado nas edições de hoje, 31/10, de seu blog e do Jornal O Povo. Também fiquei profundamente decepcionado, na verdade, indignado, com a postura arrogante e, porque não dizer, grosseira, mal-educada, do professor Boaventura de Sousa Santos em entrevista concedida à jornalista Janaína Marques, das Páginas Azuis de O Povo, no último dia 28/10. 

Penso que quem quer ser tomado como exemplo, precisa também dar exemplo. Como grande admirador dos ensaios acadêmicos do sociólogo português, lamento que o conjunto da obra seja tão distinta da figura do autor.

Abaixo, seguem o artigo do Plínio e o link com a entrevista do sociólogo.

Marcelo Uchôa

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Black Bloc das Cores, de Hélio Rôla (clique para ampliar)
Black Bloc das Cores, de Hélio Rôla (clique para ampliar)
A sociologia da prepotência
Plínio Bortolotti

A repórter Janaína Marques foi extremamente educada (como o jornalista deve ser com o seu entrevistado), ao contornar a estupidez do professor português Boaventura de Sousa Santos, ouvido nas Páginas Azuis deste jornal (28/10/2013).
Generosa, a jornalista classificou-o no texto de abertura como “um dos intelectuais mais conceituados” e “um dos sociólogos mais festejados” da atualidade. Para outros, ele é um “ícone” da esquerda. Porém, a repórter registrou que Boaventura “irritou-se com (várias) perguntas” e “disse, algumas vezes, que era hora de terminar a entrevista”.
E o que irritou o eminente professor? Primeiro, pelo jeito, a insistência da repórter em entrevistá-lo, apelo ao qual cedeu docemente contrariado. Depois, durante a entrevista, quando passou a distribuir críticas a governos latino-americanos, a repórter quis saber se existia alguma alternativa. Boaventura interrompe:
… Essa é uma pergunta errada. É uma pergunta conservadora.
(A intimidação intelectual é um recurso autoritário, usado pela direita e pela esquerda, na tentativa de constranger jornalistas e calar dissensos. Lembram José Serra, candidato a presidente pelo PSDB? A qualquer pergunta de que não gostava, ele acusava o jornalista de estar “a serviço do PT”.)
Educadamente, a jornalista insiste; o professor volta à carga.
- (…) Se você fosse filha ou mulher do José Maria (do Tomé, agricultor assassinado em Limoeiro do Norte, depois de denunciar o uso indiscriminado de agrotóxicos na região), não me faria essa pergunta.
Deprimente. O “intelectual” vale-se do argumentum ad hominem (contra a pessoa) para desqualificar a pergunta e negar-se a respondê-la.
A propósito, como bom “sociólogo militante”, Boaventura morou em uma favela brasileira, Jacarezinho, no Rio. Deu o nome de “Pasárgada” à experiência. Das duas uma: ou ele não leu (se leu não entendeu) o poema de Manuel Bandeira; ou viu os seis meses em que morou na favela como mero passeio (do qual, obviamente, ele podia cair fora).

Fonte: Blog Plínio Bortolloti/Jornal O Povo, 31/10/13, disponível em:  http://blog.opovo.com.br/pliniobortolotti/boaventura-de-sousa-santos-a-sociologia-da-prepotencia/

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Link da entrevista "Ideias de um intelectual militante", com o sociólogo Boaventura Sousa Santos, nas Páginas Azuis do Jornal O Povo, de 28/10/13:

http://www.opovo.com.br/app/opovo/paginasazuis/2013/10/28/noticiasjornalpaginasazuis,3153810/ideias-de-um-intelectual-militante.shtml

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

‘Mendigo deveria virar ração para peixe’, diz vereador de Piraí ao defender projeto que proíbe voto a moradores de rua

Nosso comentário:

Esse negócio de trabalhar com defesa de direitos humanos é complicado. Quando a gente pensa que já viu tudo, sempre tem um energúmeno pra dizer mais besteira. Vejam só no vídeo abaixo, do Extra, o depoimento deste pústula, que atualmente é vereador do PTdoB de Piraí, no Rio de Janeiro... Preconceituoso é pouco. Não bastasse querer suprimir os direitos políticos de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade social, ele diz que pela vontade dele elas seriam EXTERMINADAS. É mole? 

Marcelo Uchôa

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Fonte: Extra, 28/10/13, disponível em: http://extra.globo.com/noticias/rio/mendigo-deveria-virar-racao-para-peixe-diz-vereador-de-pirai-ao-defender-projeto-que-proibe-voto-moradores-de-rua-10561076.html

Apoio à PEC 555 e à greve docente na UECE

Manifesto aqui duas coisas:

1a) apoio à aprovação da PEC 555, que altera a Constituição da República, para isentar da contribuição previdenciária aposentados e pensionistas do serviço público; 

2a) apoio à greve d@s professor@s da UECE, pelo inconformismo com as condições de trabalho oferecidas na Universidade, em especial, a não regulamentação de pontos importantes do Plano de Cargos, Carreiras e Vencimentos da categoria. 

Sempre defendi as duas bandeiras, não mudaria agora. 

Força na luta e sucesso, companheir@s!

Marcelo Uchôa 

* Imagem extraída da internet

Voto de congratulação

Sensibilizado, agradeço às deputadas e deputados estaduais do Ceará a aprovação, em sessão única do Plenário da Assembleia Legislativa, no último dia 19 de setembro, do Requerimento n. 2460/2013, de autoria do Deputado Mário Hélio, registrando em Ata dos trabalhos legislativos voto de congratulação, em meu favor, pelo lançamento do Livro Direito Internacional.

Meu forte abraço,
 

Marcelo Uchôa
Advogado e Professor de Direito da Universidade de Fortaleza/UNIFOR

Erros de Eike custam caro ao Brasil. Bancos e CVM devem explicação

A petroleira OGX, de Eike Batista, anunciou hoje que não chegou a um acordo com os credores e pode entrar com pedido de recuperação judicial. É uma notícia triste, mas não surpreendente, porque já vínhamos vendo a derrocada do grupo há vários meses. Caminhava-se nessa direção. As ações já viraram pó há muito tempo, e a empresa, infelizmente, chega a essa situação de concordata.

É um dia triste, porque estamos falando de um grupo que poderia ter feito um trabalho bom de renovação do capitalismo brasileiro. Muita gente errou nessa história, mas quem errou mais foi o empresário Eike Batista. Desde o começo, ele transformava pequenos indícios em afirmações categóricas sobre as reservas, superdimensionadas. Com tanta afirmação otimista, as ações subiam, produzindo uma bolha. Ele conseguiu captar bastante, fez IPOs com valores exagerados e, com base nisso, pegou empréstimos em bancos - públicos, inclusive -, dando como garantia ações e ativos que hoje não têm valor no mercado. Cheguei a falar à época que ele embrulhava vento e vendia.

Ele é o principal responsável porque entrava em uma área e, antes que maturasse, já estava em outra. Esse foi o centro do seu erro como empresário. E proclamava que seu objetivo era ser o homem mais rico do mundo, um objetivo pobre para um empreendedor, que pode construir riqueza, dar dinamismo à economia e ajudar a realizar os sonhos de outras pessoas. Essa ganância o levou a ser apressado e descuidado.

Tudo isso custa caro para o Brasil em vários sentidos: afeta a imagem do país, porque o próprio governo o transformou num símbolo. Custa caro também porque ele se financiou muito em bancos públicos. O BNDES insiste em dizer que não perdeu um tostão com Eike. Estranho, porque todo mundo que comprou ação do grupo perdeu. Falta transparência. O banco tem de dar explicações à opinião pública, já que é o contribuinte que sustenta o BNDES.

Eike tem muitas ideias, mas não esperava que se consolidassem e já partia para outra, empilhando empreendimentos. Esse foi seu principal erro. Não esperar a maturação dos investimentos no delírio de perseguir o objetivo de ser o mais rico do mundo.

Algumas empresas do grupo têm ativos, que estão sendo vendidos ou ganhando novos parceiros. As chances de recuperação são poucas, principalmente as de algumas empresas. Sobre a de petróleo, por exemplo, ele chegou a falar de reservas enormes e nada se confirmou.

Acho que algumas instituições têm explicações a dar, como os bancos públicos. Está na hora de eles explicarem quanto perderam e o que isso significa para o acionista controlador, o Tesouro. A agência reguladora do mercado de capitais nunca deu explicação devida sobre o fato de ele ter dado informações que não se confirmaram depois. Ao acreditarem nelas, os acionistas compraram papéis e perderam dinheiro.

Ouçam aqui o comentário feito na CBN

Fonte:  MiriamLeitão.com, 29/10/13, disponível em: http://oglobo.globo.com/economia/miriam/posts/2013/10/29/erros-de-eike-custam-caro-ao-brasil-bancos-cvm-devem-explicacao-513555.asp

terça-feira, 29 de outubro de 2013

As perigosas rotas de migração para entrada na Europa


Rotas de imigração para a Europa

 
Anualmente milhares de pessoas – muitas delas fugindo de conflitos na África e no Oriente Médio – arriscam suas vidas cruzando o Deserto do Saara e o Mar Mediterrâneo em veículos e barcos precários para chegar à Europa.

Organizações não-governamentais estimam que aproximadamente 20 mil pessoas podem ter morrido tentando chegar à Europa nas últimas duas décadas.

Para ter um diagnóstico mais preciso do problema, a Frontex (agência europeia de fronteiras) e o Centro Internacional para Desenvolvimento de Políticas Migratórias produziram uma série de mapas que identificam as maiores rotas centros de concentração usados pelos migrantes na região.

O caso mais recente de tragédia envolvendo imigrantes veio a público nesta 
segunda-feira. Cerca de 35 imigrantes teriam morrido de sede ao tentar cruzar o 

Deserto do Saara, do Niger em direção ao norte da África.
Segundo autoridades do país, eles tentavam chegar a um porto no Mediterrâneo para tentar a travessia por mar em direção à Europa.

As vítimas estavam em um comboio que tentou cruzar o deserto com 60 pessoas há duas semanas. Um dos dois caminhões usados no transporte quebrou. Os sobreviventes só conseguiram sair do deserto nesta segunda-feira.

 

Assunto antigo

 

Navio da guarda costeira italiana chega a porto após resgatar 100 imigrantes (foto: Getty)
Itália substitui Espanha como principal destino de imigrantes vindos da África

A maior parte dos migrantes que cruzam o Mediterrâneo a partir da Líbia e da Tunísia são originários da Eritrea e da Somália. Contudo, a guerra civil na Síria está elevando o número de sírios que também usam essa rota.

Em 11 de outubro, mais de 30 pessoas morreram quando uma embarcação com 250 imigrantes afundou na costa de Malta.

Na ocasião, o premiê de Malta alertou que o Mediterrâneo corria o risco de se tornar um "cemitério de imigrantes desesperados". A ONU diz que cerca de 32 mil pessoas chegaram em Malta e na Itália só neste ano.

Há duas semanas, mais de 200 imigrantes também chegaram na Sicília após serem resgatados pela guarda costeira italiana e um navio mercante perto da Ilha italiana de Lampedusa.

No entanto, Adrian Edwards, da Acnur, a agência da ONU para refugiados, lembra que o “fenômeno das pessoas que viajam em pequenos barcos no Mediterrâneo para a Europa é antigo e envolve questões como asilo e migração".

"As vítimas do último barco que naufragou perto de Lampedusa era composto por uma maioria de eritreus, muitos dos quais precisam de proteção internacional", disse ele.

 

Líbia


A Líbia se tornou um ponto de partida importante para muitas viagens. Traficantes de pessoas exploram o crescente vácuo de autoridade no país para operar.

A relativamente pequena distância entre a Líbia e a ilha italiana de Lampedusa encoraja mais pessoas a se arriscarem na jornada.

O número de usuários das várias rotas ao longo do Mediterrâneo tem fluxo e refluxo.

De 2008 a 2012, um grande número de migrantes cruzou o mar entre a Turquia e a Grécia pela chamada Rota do Mediterrâneo do Leste, segundo a Frontex. Para fazer frente a isso, a Grécia reforçou seus controles de fronteira com mais 1,8 mil policiais.

Mas a Frontex diz que a área continua problemática e aponta para "incertezas relacionadas à insustentabilidade dos esforços (gregos) e evidências de que os imigrantes aguardam na Turquia pelo fim da operação".

Na última década, a rota que passa pelo centro do Mediterrâneo tem experimentado picos periódicos no tráfego de imigrantes.

Dados da Acnur sugerem que cerca de 25 mil pessoas chegaram na Itália a partir do norte da África em 2005. Esse número diminuiu para cerca de 9,5 mil em 2009.

Porém em 2011 esse número voltou a crescer atingindo a marca de 61 imigrantes. A alta foi motivada pelo conflito da Líbia, que culminou com a queda do coronel Muammar Khadafi.

Variações no uso das rotas pelo mediterrâneo

No começo da década, a rota mais popular entre imigrantes ilegais era entre o oeste africano e a Espanha. Ela incluía territórios espanhóis no norte da África como Ceuta e Melilla e as Ilhas Canárias.

Aproximadamente 32 mil imigrantes teriam usado esse caminho em 2006, porém o número caiu para cerca de 5,4mil em 2011.

Fonte: BBC Brasil, 28/10/13, disponível em:  http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/10/131028_mapa_imigracao_lk.shtml

Pobres vendem órgãos para pagar dívidas de microcrédito em Bangladesh

 
Mohammad Moqarram Hossen | Sophie Cousins - BBC
Mohammad Hossen vendeu o rim e hoje está com saúde debilitada

O vilarejo de Kalai, em Bangladesh, tem uma paisagem idílica à primeira vista, como outros vilarejos do país. Mas vários habitantes locais alegam ter sido convencidos a vender seus órgãos para pagar dívidas que fizeram em esquemas de microcrédito.

A ideia de oferecer pequenos empréstimos a pessoas rejeitadas pelos programas de crédito bancário tradicionais rendeu o Prêmio Nobel da Paz de 2006 ao bengali Mohammad Yunus, sendo saudada como um caminho para que essas pessoas saíssem da pobreza.
 
A proposta era que os empréstimos incentivassem o empreendedorismo e dessem poder às mulheres. Mas, como mostra o relato da jornalista Sophie Cousins, que esteve em Kalai, a “revolução” acabou agravando os problemas enfrentados por alguns aqueles que mais deveria ajudar.
 
A seis horas ao norte da capital Daca, crianças brincam nuas se pendurando em pedaços de bambu que sustentam as cabanas onde moram.

Essas crianças, assim como outras milhões que vivem nas áreas rurais de Bangladesh, crescem em meio a grandes dificuldades financeiras. 

Em uma tentativa de aliviar a pobreza, muitos habitantes de Kalai contraem empréstimos, mas em seguida mergulham em mais dívidas quando se veem incapazes de pagar as prestações.

Alguns, inclusive, decidem vender seus órgãos como último recurso para saldar as dívidas e tentar escapar do ciclo vicioso da pobreza.

A venda de órgãos em si não é uma novidade, e muitas pessoas pobres no Sul da Ásia recorrem a esta prática há anos. Mas o que não se falava muito até agora é que cada vez mais pessoas estão fazendo parte de uma rede de tráfico de órgãos porque se sentem pressionadas a pagar suas dívidas.

 

Arrependimento

Mohammad Akhtar Alam, de 33 anos, exibe uma cicatriz de 38 centímetros de comprimento que mostra de onde extraíram seu rim. A remoção de órgão – algo ilegal em Bangladesh a menos que seja para doação para um parente próximo - combinada com cuidados pós-operatórios precários, o deixou parcialmente paralisado, cego de um olho e incapaz de carregar pesos.

Ele é dono de uma pequena mercearia que vende arroz, farinha e, de vez em quando, doces.

Há dois anos, sua renda como motorista de van não era suficiente para pagar as parcelas semanais de dívidas que havia contraído com oito organizações não-governamentais (ONGs) diferentes. Quando não conseguiu arcar com a primeira dívida, contraiu uma segunda para pagar a primeira e assim sucessivamente.

"Um dia estava conversando com um passageiro que me perguntou porque estava fazendo aquele trabalho", relembra.

"Eu expliquei que era pobre e devia cerca de 100 mil taka (aproximadamente US$ 1,3 mil)".

O passageiro era uma peça importante em uma rede de tráfico de órgãos, intermediando a compra e vende de rins, fígados, entre outros. 

O homem convenceu Alam a vender seu rim e lhe prometeu 400 mil taka (cerca de US$ 5 mil) em retorno.

Duas semanas mais tarde, Alam deixou um hospital privado em Daca e voltou para casa com a saúde debilitada e com uma fração do dinheiro que lhe foi prometido. Ele se arrepende do que fez.

Mohammad Moqarram Hossen, também de Kalai, é outra vítima.

"Eu decidi pagar a dívida", diz ele, enquanto mostra a cicatriz de uma operação que fez na Índia para remover um rim.

"O médico disse que não teria riscos, mas agora não posso fazer nenhum trabalho pesado."

 

'Pressão'

O microcrédito, aclamado como "salvação" para milhões de pessoas, tem como objetivo quebrar o ciclo de pobreza estimulando atividades geradoras de renda por meio de empréstimos com poucos efeitos colaterais.

Vilarejo de Kalai  | Sophie Cousins - BBC
No vilarejo de Kalai, muitos residentes estão endividados

Mas sua estrutura de pagamento e a aparente incapacidade de as instituições de microfinanças determinarem quem já tem outros empréstimos pode causar problemas.

O professor Monir Moniruzzaman, do departamento de Antropologia da Universidade do Estado de Michigan (Estados Unidos), investiga o comércio de órgãos em Bangladesh há 12 anos.

"As dívidas de muitas pessoas crescem em uma espiral, e eles acham que a única forma de pagar as parcelas é vendendo o próprio rim", observa.

Ele alega que instituições como o Banco Grameen (laureado com o Nobel da Paz em 2006 juntamente com Yunus) e a ONG Brac fazem pressão psicológica para as pessoas pagarem suas dívidas com ações como marcar presença em frente à casa do cliente o dia todo e ameaças verbais de que o devedor será denunciado à polícia.

O acadêmico confirmou que algumas das 33 pessoas que venderam seus rins que ele entrevistou para sua pesquisa disseram que tomaram a decisão por se sentirem pressionadas a pagar o que deviam.

"Um homem me contou que deixou sua cidade por um ano por não conseguir encarar os funcionários da ONG", contou Moniruzzaman.

Em entrevista à BBC, o banco Grameen negou que haja assédio ou outros tipos de pressão e afirma que nunca entrou com ação contra quem toma empréstimo.

E Mohammad Ariful Hoq, analista da Brac, uma das maiores organizações de desenvolvimento do mundo, nega que seus funcionários pressionem os clientes ou que haja ligação entre microcrédito e tráfico de órgãos.

 

Benefícios do microcrédito

Uma pesquisa divulgada neste ano pelo Banco Mundial mostrou que são grandes os benefícios dos empréstimos, e dados compilados por uma "campanha pelo microcrédito" apontam que este tipo de empréstimo já tirou dez milhões de bengaleses da pobreza entre 1990 e 2008.

Mas à medida que a demanda por órgãos continua a alimentar um mercado negro em Bangladesh, membros pobres de comunidades rurais continuarão sendo seduzidos por falsas promessas de uma vida melhor.

Segundo o professor Moniruzzaman, as consequências do tráfico de órgãos são devastadoras.

"Não há garantias sobre a procedência dos órgãos e quão seguros eles são. Por outro lado, sob a perspectiva de quem está vendendo, a saúde se deteriora após a operação, tornando difícil para a pessoa voltar a ganhar dinheiro porque não poderá voltar para seus trabalhos antigos que demandam muito fisicamente."

Não há dúvida de que o microcrédito mudou a vida de milhões em todo mundo.

Mas à medida que a polarização entre ricos e pobres aumenta, especialistas acreditam que os mais necessitados vão continuar contraindo mais dívidas, algumas vezes recorrendo a medidas desesperadas como a venda de órgãos.

Os homens de Kalai gostariam de ter sabido disso antes.

Fonte: BBC Brasil, 28/10/13, disponível em:  http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/10/131028_bangladesh_orgaos_fl.shtml

sábado, 26 de outubro de 2013

Artigo: Anistia em branco não! (Jornal O Povo)

Durante o processo, o Brasil não negou a responsabilidade sobre os fatos

Marcelo Uchôa
Advogado e professor de Direito Internacional e Direitos Humanos/Unifor 

Em 24/11/10, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes Lund e outros, por desaparecimentos forçados, falta de acesso a informações e ineficácia de meios jurídico-administrativos em restabelecer a verdade e a justiça sobre as ações das forças armadas durante a Guerrilha do Araguaia, perpetradas na forma de detenções arbitrárias, torturas, vedação de acesso a tribunais e meios de defesa, execuções sumárias e ocultações de corpos de militantes contrários à ditadura, e impedimento, até hoje, de acesso de familiares a informações precisas sobre fatos relacionados ao extermínio e paradeiro das vítimas.

Durante o processo, o Brasil não negou a responsabilidade sobre os fatos. Ao contrário, afirmou ressentir-se pelos excessos cometidos e lamentou a dor dos parentes. Disse haver organizado missões de busca no local e instituído leis visando à verdade. Mas até agora descumpriu a condenação em seus pontos mais importantes: na localização e entrega dos restos mortais e na penalização dos responsáveis pelos crimes.

Quanto à primeira sanção, alega haver tentado elucidar os acontecimentos por diversos meios, concordando em continuar. Mas afirma não poder cumprir a segunda, porque a Lei 6.683/79 (Lei de Anistia) anistiou os agentes da ditadura que cometeram crimes durante o regime militar, posição consolidada pelo STF quando julgou improcedente a ADPF 153, da OAB, em 29/04/10.

Só que, à parte a questão ética, juridicamente o Brasil não pode se insubordinar contra a decisão da Corte Interamericana. À medida que o país, espontaneamente, se sujeitou à Convenção Americana de Direitos Humanos (25/11/92), automaticamente aceitou a jurisdição do tribunal, admitindo o controle de convencionalidade sobre o direito interno quando conflitante com normas internacionais. Por isso, considerando que o desaparecimento forçado é tido internacionalmente como crime lesa humanidade, convertendo-se o correlato direito de investigar e punir em norma jus cogens (imperativa), sua ação delituosa jamais poderá prescrever, menos ainda ser anistiada.

Esta é a compreensão da ONU, do Tribunal Europeu e da Comissão Africana dos Direitos Humanos, do Tribunal Penal Internacional, e da Corte Interamericana. Não por acaso vários países do continente já conformaram suas leis à Convenção, p. ex, Colômbia, Chile, Argentina, Peru e Uruguai.

Falta agora o Brasil cumprir sua obrigação de reinterpretar a Lei 6.683/79, para investigar e responsabilizar os agentes da ditadura envolvidos no caso Araguaia e em todos os demais crimes do período militar. Afinal, segundo bem sublinhou a sentença, a lei de anistia não pode ser uma lei de ponto final que impede o acesso à justiça, uma anistia em branco para qualquer delito que viole o dever internacional estatal de proteção aos direitos humanos.


Fonte: Jornal O Povo, 26/10/13, disponível em:  http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2013/10/26/noticiasjornalopiniao,3153025/anistia-em-branco-nao.shtml

Palestra de Roberto Caldas na UNIFOR leva público a ocupar chão e corredores

Numa manhã histórica de sexta-feira, 25/10, centenas de estudantes e professores se comprimiram no Auditório da Biblioteca da Universidade de Fortaleza/UNIFOR, para assistir a palestra "O Sistema Interamericano de Direitos Humanos", proferida pelo Dr. Roberto de Figueiredo Caldas, juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanas, num dos mais importantes e aguardados eventos do Mundo UNIFOR 2013.

O grande público, que lotou todas as cadeiras e ocupou chão e corredores do espaço, acolheu interessados sobre o tema de cursos de Direito e Relações Internacionais não apenas da UNIFOR, mas de outras faculdades e universidades do Ceará.
A mesa foi conduzida pelo Professor de Direito Internacional e Direitos Humanos da Universidade de Fortaleza - UNIFOR, advogado de Uchôa Advogados Associados, Marcelo Uchôa, sendo integrada, ainda, pelo professor do Mestrado e Doutorado em Direito Constitucional da UNIFOR e UFC, Gustavo Raposo Feitosa, na qualidade de debatedor.

Fotos: Detalhes do evento

Blog do Marcelo Uchôa

Sucesso absoluto, o Seminário Direito à Memória e à Verdade da Justiça Federal

Nos últimos dias 24 e 25 de outubro aconteceu, na Justiça Federal, organizado pela Escola da Magistratura Federal do TRF da 5a Região, Núcleo Ceará, o Seminário Memória, Verdade e Justiça. 

Acompanhado por grande público, o Seminário contou com a participação de personalidades como o Dr. Roberto de Figueiredo Caldas, juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Dr. Cláudio Fonteles, ex integrante da Comissão Nacional da Verdade, Dra Sueli Bellato, da Comissão Nacional de Anistia, Dr. Perly Cipriano, Secretário de Direitos Humanos do Espírito Santo e ex integrante da Comissão de Mortos e Desaparecidos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Mário Albuquerque, da Comissão de Anistia do Estado do Ceará, de jornalistas, intelectuais e estudiosos do tema, de ex presos políticos e autoridades com importante papel durante o processo de anistia, além de militares.

A organização do evento coube aos juízes federais Leonardo Rezende Martins, diretor do Fórum da Justiça Federal no Ceará, Dr. Ricardo Arruda e Dr. George Marmelstein. 

Dois advogados de Uchôa Advogados Associados compuseram mesas no evento: Dr. Inocêncio Uchôa, na "abertura solene", representando o presidente da Escola Judiciária do TRT da 7a Região, Dr. José Antônio Parente, e, na condição de ex preso e clandestino político, na Mesa Redonda "A repressão no Ceará", ao lado da ex deputada estadual e da Comissão Parlamentar Estadual pela Anistia Política, Maria Luíza Fontenele, advogado e vereador cassado pela ditadura, Tarcísio Leitão, ex preso políticos e atual Presidente da Comissão e Anistia Estadual, Mário Albuquerque; quem também integrou mesa debatendo sobre o "Caso Guerrilha do Araguaia" com o Juiz da Corte Interamericana de Diretos Humanos, Dr. Roberto Caldas, e o advogado, sociólogo e ex militante no Araguaia, Dr. Pedro Albuquerque, foi o Dr. Marcelo Uchôa, advogado e professor de Direito Internacional e Direitos Humanos da Universidade de Fortaleza - UNIFOR.

* Nas fotos acima, detalhes da Mesas de Abertura (da esq p/ direita: Dr. Cláudio Fonteles, Dr. Ricardo Arruda, Dr. Leonardo Rezende Martins e Dr. Inocêncio Uchôa) e da Mesa do Painel "Caso Araguaia" (da esq p/ direita: Dr. Marcelo Uchôa, Dr. Roberto Caldas, Dr. Ricardo Arruda e Dr. Pedro Albuquerque) 

Blog do Marcelo Uchôa

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

EDITORIAL JORNAL O POVO: Justiça de Transição: verdade, justiça e reconciliação

"O trabalho é árduo e começa pela necessidade de adequar a legislação brasileira à internacional"
  
Fortaleza abriga, hoje e amanhã, na sede da Justiça Federal no Ceará, o Seminário “Direito à Memória e à Verdade”, promovido pela Escola de Magistratura Federal no Ceará. O evento tem à frente os juízes federais George Marmelstein e Ricardo José Brito Arruda. Dentre os participantes, o ex-procurador geral da República, Cláudio Fonteles, a vice-presidente da Comissão Nacional da Verdade (CNV), Sueli Bellato, e membros do Ministério Público Federal, atuantes no tema, em vários estados, além do magistrado Roberto Caldas, membro da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

A justiça de transição é um processo aplicado em países que passaram por regimes autoritários e violadores de direitos humanos. O seu objetivo é a compensação das vítimas, a revelação da verdade dos fatos e a justiça para os culpados, para que as feridas sejam sanadas e a memória dos crimes evite sua repetição.

Infelizmente, no Brasil, só depois de passados mais de 30 anos da Lei de Anistia de 1979 (imposta pelo regime militar para proteger seus agentes) é que o processo da justiça de transição começou a caminhar, mesmo assim com imensas dificuldades, em face da resistência passiva do establishment. O fato de o Ceará abrigar, pioneiramente, na área do Judiciário, uma iniciativa desse porte, trazendo para dentro dela operadores do Direito, acadêmicos e a sociedade civil em geral, confirma a tradição libertária dos cearenses.

O processo, iniciado com muitas dificuldades, no Brasil, deu ênfase à primeira parte - a questão da reparação das vítimas, mas, pouco conseguiu avançar em termos de verdade e justiça. O conserto vem sendo tentado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, em busca de promover uma verdadeira reconciliação nacional, através da recuperação da memória e em busca de fazer a justiça. Mas, o trabalho é árduo e começa pela necessidade de adequar a legislação brasileira à internacional. Esta não reconhece a Anistia de 1979, por considerá-la uma autoanistia em favor dos agentes do Estado envolvidos em crime contra os direitos humanos (e o Brasil já foi condenado por isso).

A esperança é que eventos como este ajudem a resgatar os compromissos assumidos pelo Brasil como signatário de tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos.


Fonte: Jornal O Povo, 24/10/12, disponível em: http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2013/10/24/noticiasjornalopiniao,3151759/justica-de-transicao-verdade-justica-e-reconciliacao.shtml

Seminário "Direito à Memória e à Verdade" terá início nesta quinta

O Seminário Direito à Memória e à Verdade, que será realizado no Auditório da Justiça Federal no Ceará, terá início a partir das 8h desta quinta-feira, 24. Entre as mesas de debate, destaque para o Direito Fundamental à Verdade, A Justiça de Transição na América Latina, A Repressão no Ceará e A Igreja e a Ditadura Militar. Com painéis que abordarão a Lei da Anistia e a justiça de Transição na América Latina.
O seminário vai contar com a presença de Cláudio Fonteles, da
Comissão Nacional da Verdade; Sueli Bellato, da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça; Perly Cipriano, da Secretaria Especial de Direitos Humanos; entre professores universitários e conhecedores do tema. O evento ocorrerá até sexta-feira, 25, entre 8h e 18h30.


Fonte: Jornal O Povo, 24/10/13, disponível em: http://www.opovo.com.br/app/fortaleza/2013/10/23/noticiafortaleza,3151700/seminario-direito-a-memoria-e-a-verdade-tera-inicio-nesta-quinta.shtml

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

"Todo conservador quer uma Constituição enxuta"

Por
"Um dos maiores juristas do Brasil." Essa é a definição mais comum de se encontrar em menções a José Afonso da Silva. Seja qual for a filiação teórica, operadores do Direito reverenciam a obra do jurista mineiro de 88 anos, nascido em Pompéu. Não por acaso. Formulador de influente parte da doutrina sobre Direito Constitucional no país, ele testemunhou e atuou no processo que culminou com a promulgação da Constituição em 1988, que comemora um quarto de século.

Ao lado de representantes de diferentes áreas do conhecimento e setores da sociedade, José Afonso da Silva fez parte do time de notáveis na Comissão Afonso Arinos que, entre 1985 e 1986, elaborou o anteprojeto de Constituição. O texto acabou não sendo enviado pelo presidente Sarney à Assembleia Nacional Constituinte, instalada em 1987, mas o trabalho não foi em vão e acabou sendo aproveitado conforme relata. "Ele não tinha como ser ignorado", relembra. Seu trabalho prosseguiu na assembleia, dessa vez como assessor do então senador pelo PMDB Mário Covas. Principal teórico e formulador dos Direitos Sociais garantidos pela Constituição, José Afonso da Silva pode ser considerado um constituinte de fato. 

Tal qual no texto constitucional, não se separa a dimensão política da interpretação teórica que o professor aposentado da Universidade de São Paulo faz do processo Constituinte e de como ele se desdobrou. "O atual sistema eleitoral prejudica a governabilidade", avalia, além de apontar os defeitos do sistema judiciário que perduraram com a Constituição. Apesar dos novos direitos que foram garantidos, o "Poder Judiciário ficou praticamente intacto", diz.

Crítico do conservadorismo, reconhece o caráter progressista que o texto final da Constituição assumiu e está atento às tentativas de se reduzir os direitos sociais que marcam a Constituição. Entretanto, o jurista não se aflige com a falta de regulamentação dos vários dispositivos constitucionais — "não existe democracia acabada" — nem acha que a Carta perdeu sua essência — "os direitos fundamentais constituem um núcleo importante na Constituição. É aí que está a vantagem".

José Afonso da Silva trabalhou em roça de milho, feijão e arroz, foi padeiro, garimpeiro de cristal e alfaiate. Em 1947, mudou-se aos 22 anos para São Paulo, onde concluiu o curso Madureza, uma espécie de supletivo à época. Aos 32, formou-se na Faculdade de Direito da USP, onde foi professor titular e livre-docente em Direito do Estado, Direito Financeiro e Processo Civil. Também foi livre-docente em Direito Constitucional da Universidade Federal de Minas Gerais. No poder público, foi procurador do estado de São Paulo, chefe de gabinete da Secretaria da Justiça do estado, secretário de negócios jurídicos da capital e secretário da Segurança Pública.

Hoje aposentado, já não advoga ou dá parecer. Se dedica a manter sua obra atualizada, da qual se destacam Curso de Direito Constitucional Positivo, que está em sua 36ª edição, e Aplicabilidade das Normas Constitucionais, esta na 8ª edição. Foi em seu escritório, em São Paulo, que José Afonso da Silva recebeu a reportagem da ConJur para dois encontros nos dias 2 e 3 de outubro — no dia 1º, havia sido homenageado pela Ordem dos Advogados do Brasil por sua participação na elaboração do texto constitucional. Na conversa, o jurista relembrou momentos marcantes da Comissão Afonso Arinos e da Constituinte, avaliou o Judiciário brasileiro e fez um balanço desses 25 anos.

Leia os principais trechos da entrevista: 

ConJur — O senhor participou da Comissão Afonso Arinos, que elaborou um projeto de Constituição e acabou não sendo enviado pelo então presidente Sarney à Assembleia Constituinte. O que aconteceu?
José Afonso da Silva — Ele não mandou o projeto da Afonso Arinos para a Constituinte porque era parlamentarista e socialmente avançado. Deu a desculpa de que não quis interferir, mas foi por isso que ele não mandou.


ConJur — Houve frustração pelo fato de o texto não ter sido enviado ou se sabia que aquele texto não tinha como ser ignorado?
José Afonso da Silva — Não tinha como ser ignorado, ele foi muito debatido. Ali não eram só juristas. Tinha muita gente de outras áreas do conhecimento. Como o presidente José Sarney não mandou o projeto à Assembleia, mas mandou publicar no Diário Oficial, os constituintes pegaram aquilo e começaram a tirar partes e apresentar. Então houve uma influência muito grande em praticamente tudo.


ConJur — Qual foi sua importância?
José Afonso da Silva — Se não houvesse a comissão Afonso Arinos talvez não teria havido a Constituinte. Foi só naquele momento que se discutiu Constituição e Constituinte, com muita repercussão na imprensa. A comissão Afonso Arinos acabou servindo de modelo para a estrutura da Constituinte.


ConJur — Pode citar exemplos dessa influência?José Afonso da Silva — Um tema muito debatido atualmente é o da união estável. Surgiu na Afonso Arinos por proposta de um padre que participava da comissão. Nós estávamos procurando um meio de amparar a mulher que vivia amasiada há muitos anos com alguém e quando esse alguém morresse ela acabava ficando desamparada. A união estável surgiu exatamente por isso: para amparar a mulher que vivia nessa situação não casada, mas vivendo em uma família de fato. Nós estávamos debatendo aí o padre falou ‘por que a gente não põe união estável?’. Ele se chamava Fernando Ávila, era da corrente progressista da igreja. O controle do capital estrangeiro, por exemplo, nasceu na comissão por proposta do Barbosa Lima Sobrinho. Isso foi introduzido na Constituição, mas depois veio a Emenda 6, de agosto de 1995, e tirou. O Habeas Data foi proposto por mim e também foi para a Constituição.

ConJur — E teve alguma coisa que não foi aproveitada?
José Afonso da Silva — A Constituição da Comissão Afonso Arinos era parlamentarista e isso não foi aproveitado. A proposta prosseguiu até um certo ponto na Constituinte e depois caiu com a pressão do Sarney, oferecendo vantagens, e de outros presidencialistas. Você tinha também um sistema eleitoral misto, aproximadamente um tipo alemão, e não foi aproveitado. Se adotou na Constituição um sistema puramente proporcional. Em geral, a organização dos direitos fundamentais no anteprojeto da comissão Afonso Arinos era melhor, mas a Constituição ampliou. 


ConJur — Como eram os trabalhos na Constituinte? Havia diálogo entre as comissões?
José Afonso da Silva — Não tinha muito porque conversar. Cada uma tocava o seu problema e a conversa seria feita na comissão de sistematização. Aí é que surgiu um problema mais delicado. Enquanto havia as subcomissões e as comissões, todos os constituintes estavam trabalhando. Quando foi para a comissão de sistematização havia um limite de membros. Ela não comportava todo mundo e a maioria dos constituintes ficou sem ter o que fazer. Não votavam, não discutiam e aquilo ficou reduzido a pouco mais de 100 membros. Então começou a haver reuniões paralelas. Foi também a partir disso que surgiu o Centrão. Os constituintes ficaram um pouco sem ter o que fazer, então começaram a se reunir, a reclamar e formaram grupos paralelos e daí acabaram... no Centrão. 


ConJur — Como se deu isso?
José Afonso da Silva — Quando estava na comissão de sistematização, os mais conservadores perceberam que, se mantivessem as coisas andando como estavam, não teriam condições de implementar suas ideias e daí geraram o Centrão. O próprio PMDB, que era liderado pelo Mário Covas, se dividiu. Boa parte passou a não atender a liderança e se uniu às lideranças do Centrão. Os outros partidos de esquerda se uniram ao Covas.


ConJur — Ficou tudo fragmentado.
José Afonso da Silva — Nenhum deles tinha condições de obter maioria. Mesmo o Centrão não conseguia reunir sua maioria para aprovar as coisas como eles desejavam, aí se começou a fazer negociação. Quando não chegavam a um consenso, a proposta ia para o voto do plenário e ganhava quem tivesse maioria naquela oportunidade.


ConJur — Qual o efeito disso tudo no texto final?
José Afonso da Silva — Foi um fenômeno curioso porque a maioria conservadora acabou produzindo uma Constituição razoavelmente progressista. Isso se deve à atuação do senador Mário Covas, que era o líder do PMDB, que tinha maioria absoluta da Assembleia Constituinte. Em cada subcomissão, ele apresentou relatores ou presidentes que tivessem uma orientação mais progressista e montou um xadrez de tal ordem que, apesar de a maioria da Assembleia ser conservadora, conseguiu decisões mais progressistas.


ConJur — O senhor se recorda de algum ponto que foi para o voto e acabou vencendo a pauta mais conservadora?
José Afonso da Silva — A reforma agrária foi um deles. Houve algumas concessões, mas os conservadores acabaram introduzindo elementos que asseguravam mais os interesses deles. Por incrível que pareça, o Estatuto da Terra era mais avançado do que o que ficou na Constituição.


ConJur — O senhor se candidatou a deputado constituinte, mas não se elegeu. O que motivou o senhor a se candidatar?
José Afonso da Silva — Eu vinha trabalhando com Direito Constitucional, especialmente em uma visão voltada para os direitos fundamentais. Senti-me na obrigação de tentar participar. É claro que eu não tinha condições de ser eleito, porque eu não tinha dinheiro. Um grande empresário me ofereceu dinheiro e eu recusei. Ele disse: ‘Você não fica devendo nada’. ‘Não, eu fico. Se você me der o dinheiro, um dia eu estou lá, você vai precisar de alguma coisa e eu vou ter problemas. Então para quê?’. Até costumo dizer que eu tive praticamente a mesma votação do Mário Covas, só que a dele foi multiplicada por mil. Mário Covas teve 7,5 milhões e eu tive 7,5 mil.


ConJur — O senhor acabou participando como assessor do Mário Covas. Conseguiu dar as mesmas contribuições que o senhor pretendia como deputado?
José Afonso da Silva — Como deputado, eu teria muito mais possibilidade de contribuir. Como assessor eu não podia me intrometer nas coisas, ficava mais dependente de indagações. Muitas vezes eu senti não ser parlamentar para interferir nas discussões e votações de temas que me pareciam com encaminhamento adequado.


ConJur — O senhor se ressente de algum ponto que tenha entrado na Constituição, mas não da forma que o senhor gostaria?
José Afonso da Silva — Em geral não, porque a parte que mais me interessava era a parte dos direitos fundamentais e essa foi bem implementada. Eu tinha uma visão diferente da organização do poder. Eu propunha um Poder Executivo menos personalista, que eu chamava de Poder Executivo de gabinete. Isso não passou, era difícil de passar. Entre ter um presidencialismo hegemônico — como nós temos, chamado hoje presidencialismo de coalizão — eu preferia o parlamentarismo na forma que estava sendo previsto na comissão Afonso Arinos — e chegou até a comissão de sistematização, na Constituinte.


ConJur — Como era sua proposta?
José Afonso da Silva — Haveria o presidente da República e também um conselho de ministros com competência própria. Embora os ministros fossem de confiança do presidente, o conselho seria independente para o exercício de sua competência. Isso quebraria um pouco a hegemonia personalista do presidencialismo.


ConJur — E qual é o problema desse presidencialismo de coalizão?
José Afonso da Silva — O sistema partidário do Brasil é muito fragmentado e indisciplinado. Na maior parte das vezes, o presidente tem que fazer negociações individuais e muitas concessões, que levam à corrupção. No Brasil, ou na América Latina em geral, tem que se fazer coalizão porque o partido do presidente nunca é capaz de fazer a maioria e as negociações muitas vezes não são institucionais.


ConJur — E a Constituição legitima isso?
José Afonso da Silva — Como ela permite a criação de muitos partidos, de certo modo ela facilita muito. É por isso que está se buscando uma reforma partidária que tente reorganizar isso. O sistema favorece a mediocridade, a formação de políticos não muito comprometidos com o interesse público. Eles não votam uma reforma política que coíba essas práticas porque será cortar na própria carne.


ConJur — Concorda com quem diz que a Constituição ficou sendo híbrida por adotar o presidencialismo em cima de um texto parlamentarista?
José Afonso da Silva — Não. Só a medida provisória, que seria um instituto mais adequado para o sistema parlamentarista, mas de resto não tem nada de híbrido. Pode-se até achar que a estrutura de poder ficou mal organizada talvez porque, na última hora, sob pressão do Sarney, puseram as normas do presidencialismo no lugar onde estavam normas do parlamentarismo.


ConJur — E ela deixaria o país ingovernável como ele chegou a afirmar?
José Afonso da Silva — A gente está vendo que não prejudicou nada. O que prejudica a governabilidade é exatamente o atual sistema eleitoral de representação proporcional e a fragmentação partidária. A multiplicidade de partidos é que gera a necessidade de coligações de vários partidos para formar a base governista. Essa indisciplina partidária que faz com que cada um faça o que quer sem muito compromisso com a orientação partidária... Isso é que realmente complica a governabilidade. 


ConJur — A Constituição carrega traumas do período militar?
José Afonso da Silva — Em alguns aspectos carrega, embora menos do que a Constituição de 1946, em grande parte aprovada contra a ditadura do Getúlio Vargas. Por isso a doutrina fala que ela nasceu de costas para o futuro porque estava preocupada com o passado. A Constituição de 1988 se voltou mais para o futuro. Mas há um dispositivo (artigo 5º, inciso XLIV), por exemplo, que considera crime inafiançável a ação de grupos armados contra a ordem constitucional. Há também a norma sobre a cassação do mandato, exatamente para não ocorrer como no regime militar, em que o presidente ou outro poder cassava o parlamentar. Agora só a Casa respectiva pode cassar o mandato. Esse talvez seja o tema mais diretamente contrário ao que aconteceu na ditadura.


ConJur — Diante dessa perspectiva de agora, com as instituições mais consolidadas, o senhor acha que a Constituição fez certo?
José Afonso da Silva — Eu acho que fez pelo seguinte: o mandato é popular. Ou se dá essa possibilidade ao povo através do recall — o que é complicado em um país tão grande como o Brasil — ou se dá o poder de cassar à Casa a que pertence o congressista.


ConJur — Mesmo com a condenação?
José Afonso da Silva — Mesmo com a condenação. Isso se fundamenta na autonomia dos poderes. No caso do parlamentar, se outro poder cassa seu mandato há uma interferência. A casa respectiva tem que cumprir seu dever porque a condenação seria apenas pressuposto para a instauração do processo na Câmara.


ConJur — É um preço que a gente tem que pagar...
José Afonso da Silva — Pela democracia. Veja bem: nós sabemos que as instituições parlamentares no Brasil são muito ruins hoje. Eu não costumo generalizar, porque ainda há muita gente boa lá dentro. Mas é ruim porque essa foi uma das coisas ruins que herdamos do regime militar. A ditadura liquidou com as lideranças no país. A renovação disso é muito longa e muito difícil. Por isso ainda estamos vivendo este resquício doloroso.


ConJur — O texto constitucional absorveu aspectos do Direito alemão, da Constituição americana ou portuguesa. Tem algum aspecto genuinamente brasileiro?
José Afonso da Silva — Teve influência de vários países. A Medida Provisória é de influência italiana. A inconstitucionalidade por omissão veio da Constituição portuguesa. Da Alemanha tem a organização do poder, especialmente da distribuição do Poder Legislativo, competências comuns e complementares entre União, estados e municípios. Na formação dos direitos fundamentais há influência das convenções internacionais e declarações sobre direitos humanos. No restante é mais problema nosso. Houve avanços imensos nos direitos sociais. As lutas por saúde, educação e transporte de qualidade se devem à nossa Constituição. Há também o sistema de seguridade social que não se encontra em outros países. Há alguma coisa em Portugal e na Espanha, mas aqui foi desenvolvida amplamente. O fortalecimento do Ministério Público e a autonomia do Poder Judiciário são coisas nossas. Isso tudo forjado pela Constituinte e em boa parte também na Comissão Afonso Arinos. 


ConJur — Fala-se muito da vontade do legislador, principalmente em temas polêmicos — como foi o da união estável homossexual recentemente, por exemplo. É possível definir essa vontade?
José Afonso da Silva — Esse é um tipo de interpretação absolutamente inadequada. Todo jurista sabe que a intenção do legislador não tem nenhum valor, até porque não se sabe como é que se apura essa intenção. O parlamento não tem vontade. Esse é um tipo de interpretação muito querido pelos conservadores. Nos EUA, toda vez que a Suprema Corte dá uma decisão mais progressista, surge um movimento dizendo “não é isso que os founding fathers queriam”. Então você também pode dizer: 'bom, mas essa intenção dele é a intenção sua, você é que está querendo vencer'. Essa é uma posição subjetiva. No Brasil, nenhum jurista aceita este tipo de interpretação. Quando se volta para um texto constitucional, essa interpretação se insere em um contexto formal e que vai adquirir sentido em face também dos demais dispositivos e da realidade histórica.


ConJur — O senhor concorda com a afirmação de que a nossa Constituição é muito prolixa?
José Afonso da Silva — Ela nasceu de uma negociação muito difícil. Cada um queria por alguma coisa do seu interesse. Não se pode decidir de antemão se a Constituição vai ser enxuta ou não. O processo histórico é que vai decidir o que ela vai acolher. Em uma Constituição que teve uma participação popular muito grande, é muito razoável que ela tenha acolhido muitas dessas reivindicações. Certamente existem muitas regras que poderiam ser reguladas pela legislação ordinária, mas foram inseridas na Constituição porque ela lhes garante certa estabilidade.


ConJur — Então o senhor não vê isso como um defeito?
José Afonso da Silva — Todo conservador fala isso. Eles querem que saiam de lá os direitos sociais, não querem que saia o direito de propriedade. Querem que saiam o direito à saúde, o direito do índio, o direito ao meio ambiente... Sim, se você tirar tudo isso ela fica muito enxuta. Mas aí o povo fica absolutamente desamparado. Todo conservador quer uma Constituição enxuta que garanta apenas seu direito, o direito da elite.


ConJur — Ainda é possível afirmar que existe a Constituição de 88? Ela perdeu muito de sua essência?
José Afonso da Silva — No essencial, não, porque o núcleo fundamental da Constituição são os direitos fundamentais. Esses não foram atingidos.


ConJur — Qual é o alicerce que a mantém assim?
José Afonso da Silva — Logo no início, os direitos fundamentais constituem um núcleo importante na Constituição. É aí que está a vantagem. Há muitas emendas, às vezes muito tolas, para mudar apenas um sinônimo ou as disposições transitórias. Mas não há emendas que atinjam o núcleo importante da Constituição.


ConJur — A Constituição reconheceu e garantiu novos direitos. Isso saturou a Justiça?
José Afonso da Silva — Com certeza. O acesso à Justiça foi melhorado, criaram-se as defensorias públicas. O povo descobriu que tem direitos e a Justiça para satisfazê-los. Mas um dos problemas da Constituição foi este: o Poder Judiciário ficou praticamente intacto. Não se alterou quase nada. Foram criados o Superior Tribunal de Justiça, cinco tribunais federais e nada mais. Ficou tal como estava. Não se mexeu na base.


ConJur — O que o senhor propunha?
José Afonso da Silva — Na própria minuta que eu apresentei na Afonso Arinos, tinha proposto uma descentralização. O Tribunal de Justiça ficaria um tribunal de cúpula cuidando de coisas muito gerais, os tribunais de segundo grau ficariam nas regiões do estado e cuidariam apenas dos problemas daquela região. O processo não tinha que vir para a capital, por exemplo. No âmbito federal eu propunha a criação de um Tribunal Superior Administrativo para cuidar das causas do poder público, o que aliviaria o Supremo e os tribunais superiores. Isso eu também discuti na reforma do Judiciário.


ConJur — Ao mesmo tempo que a Constituição ganhou novos dispositivos por meio de emendas, outros sequer foram regulamentados. O legislador soube lidar com esse texto constitucional?
José Afonso da Silva — Olha, interessante. Todo mundo me faz essa pergunta. O que não percebem é que o que era fundamental foi regulamentado. Temos o Estatuto do Idoso, da infância e do adolescente, normas sobre previdência... Algumas regras até já existiam, então não precisa criar outras. O que não foi regulamentado se resolveu com iniciativa popular, em outros casos o Supremo decidiu. No caso da lei para regulamentar as greves de servidor público, por exemplo, entraram com mandado de injunção para mostrar que havia uma omissão. O Supremo mandou aplicar a lei geral. Quando a falta de regulamentação cria problema para algum grupo, a Constituição deu instrumentos para solucionar, como a iniciativa popular, o mandado de injunção.


ConJur — Então o senhor não sente nenhum tipo de aflição?
José Afonso da Silva — Eu não sou daqueles que acham que a Constituição deve se aplicar toda e acabada. Não existe democracia acabada. Democracia é um processo histórico, que se vai realizando com o correr do tempo. Não se tem direitos fundamentais acabados. Nunca se acaba de cumprir os direitos sociais ou qualquer direito fundamental, até porque estão sempre aparecendo novos direitos.


ConJur — O senhor pode explicar a classificação dos direitos sociais como normas programáticas? Como isso influenciou a implementação desses direitos?
José Afonso da Silva — A norma programática não é mera intenção, mera crença. Ela tem eficácia. Na concepção que eu sustentei, ela indica os fins do Estado para buscar realizar o bem comum da população. Essa Constituição mudou muito isso. Era uma concepção de uma Constituição que não tinha um tratamento de direitos sociais como a atual, que indica os dispositivos para realizá-los. Se está previsto que o poder público tem de criar essas condições não é mero programa. Eu falo isso porque os conservadores têm uma concepção de chamar de programáticas todas as normas incômodas, que são as que produzem alguma coisa em favor do pobre. Por isso eu tenho usado muito pouco, ou quase não uso mais, a expressão “normas programáticas”. Hoje prefere-se falar em normas dirigentes ou normas de direitos de realização progressiva.


ConJur — Então o conceito de norma programática foi entendido de forma errada?
José Afonso da Silva — Essa era a concepção. Todo mundo falava em norma programática como algo que não tinha eficácia, a não ser que viesse uma lei para aplicá-la. Se não viesse não teria efeito, eficácia, não valeria nada. Tratar o direito social como mera ficção é uma forma de desqualificá-lo. Quando eu escrevi, era a Constituição de 1967 que estava em vigor e ainda se falava em norma programática. Naquela ocasião eu repelia a concepção de que elas não eram direitos, que eram meras intenções ou coisa que o valha. Repeli para dizer que elas eram regras, embora de eficácia limitada, mas importantes para a interpretação das demais normas da Constituição e porque indicavam o fim que o Estado deveria alcançar.


ConJur — O senhor acha que há algum tipo de subversão do uso da Ação Civil Pública para garantir direitos de particulares?
José Afonso da Silva — Muitas vezes o Ministério Público usa a Ação Civil Pública indevidamente, mas se ele a usa em benefício do direito social, isso é bom. Há situações em que a Justiça determina ao Poder Público que interne determinada pessoa ou forneça determinado remédio. Mas isso é bom. Eu sei que há determinadas correntes que acham que isso não devia ocorrer, mas aquele que está reivindicando precisa desse amparo. Eu acho que tudo que se faz em favor da realização dos direitos fundamentais é bom.


ConJur — A Constituição harmoniza as questões sociais com as de mercado?
José Afonso da Silva — A Constituição estabeleceu uma ordem com normas para favorecer uma economia consonante com os direitos sociais. Mas medidas e emendas posteriores retiraram tudo isso. Ficamos com uma ordem econômica tipicamente capitalista e, portanto, em dissonância com os direitos sociais.



ConJur — Em questão tributária, o senhor acha que o pacto federativo precisa ser revisto?
José Afonso da Silva — Isso é um problema histórico. Não tem muito o que mudar. O sistema tributário poderia ser mais bem distribuído. Tem que se distribuir mais os encargos, descentralizá-los. O que se pode fazer é descentralizar a prestação de serviços, com maior participação dos estados e municípios na receita da União. A legislação ordinária pode resolver isso. A crítica que em geral se faz ao sistema tributário se prende ao percentual da carga fiscal em relação ao PIB: 36%, 38% etc. Nunca aborda a questão da justiça fiscal. O sistema é injusto, sobrecarrega mais os trabalhadores e a classe média do que os ricos, sobretudo porque fundado nos tributos indiretos.


ConJur — O senhor acha que a sociedade está pronta para outras formas de participação direta?
José Afonso da Silva — Pronta ela sempre esteve, só que nunca deram esse poder para ela. Muitas das leis importantes, como a Lei da Ficha Limpa, têm sido elaboradas por iniciativa popular. Um outro exemplo é da lei para aumentar o percentual de financiamento à saúde, em tramitação no Congresso. É de iniciativa popular. Os mecanismos existem. Tem só que pôr em prática. Quem não gosta muito disso são os parlamentares. A iniciativa popular é importante, o referendo também, mais do que o plebiscito.


ConJur — Por quê?
José Afonso da Silva — Plebiscito sempre foi um instituto muito usado pelos governos autoritários para se manter no poder, para obter vantagens. Mas como ele está sob o controle do Congresso Nacional, pode ser usado. A Constituinte pôs na vontade do Congresso o poder de convocar plebiscito. Foi tirado o arbítrio do Executivo, para evitar sua utilização indevida.


ConJur — Por que o Supremo não se tornou uma corte exclusivamente constitucional?
José Afonso da Silva — Primeiro porque uma corte constitucional não pode ser composta de membros vitalícios. Na Constituinte se tentou fazer com mandato, mas não se conseguiu. Houve pressão do Supremo. Ele atuou no sentido de manter praticamente como estava. Ele é um tribunal que ainda tem que julgar a inconstitucionalidade pelo critério difuso. Isso não é próprio de uma corte constitucional, que também não tem de julgar processo criminal.


ConJur — Sua ideia de se criar um tribunal para dividir competência com o Supremo se traduziu com a criação do STJ. Hoje ambos estão sobrecarregados. Sabem separar uma questão federal de uma constitucional?
José Afonso — Em geral sabem. Ao defenderem seus clientes, os advogados usam de tudo quanto é meio para levar o processo lá para cima. É também um problema processual, cujas questões precisam ser mais bem disciplinadas. O Poder Público, por exemplo, recorre muito. Por isso eu proponho um tribunal administrativo.


ConJur — O senhor acha que tem excesso de instâncias recursais?
José Afonso — Eu acho que há muito recurso, não instâncias recursais. Muitos recursos poderiam ser eliminados.


ConJur — E a prerrogativa de foro?
José Afonso — Isso já é da tradição do país. Eu não acho que haja prejuízo. Mas poderia ser no STJ em vez de ser no Supremo, que não tem que ficar julgando crime.


ConJur — O direito de defesa perdeu espaço ou está ameaçado?
José Afonso — Eu acho que não é um problema preocupante.Talvez haja um pouco de interferência com o direito de defesa o instituto da delação premiada. Isso pode ter complicações porque é um acordo do Ministério Público homologado pelo juiz sem participação da defesa.


ConJur — Imaginava que o Supremo teria esse protagonismo? Acha que ele está muito exposto?
José Afonso da Silva — Esse é o único tribunal no mundo que fica realmente exposto. Tem até uma televisão que fica focalizando tudo. Isso tem a vantagem da transparência, mas os ministros ficam querendo se mostrar, nessa coisa de vaidade... É um caminho sem volta. Ninguém supunha que fosse haver uma televisão no Supremo, mas como a Câmara e o Senado têm... Nas casas legislativas é até justificável, porque são representantes do povo.


ConJur — Como o senhor avalia a composição atual do Supremo?
José Afonso da Silva — Não vou fazer apreciação individual de ministro. Acho que toda vida o Supremo teve ministros excelentes e ministros ruins. No geral está bem. Você tem ministros que não deveriam estar lá, como sempre teve. Quem sabe melhora.


ConJur — O Supremo julga mais por princípios ou por política?
José Afonso da Silva — O Supremo Tribunal Federal, como todo tribunal constitucional, tem uma dimensão política. Isso é inequívoco. A Constituição também tem um conteúdo político muito grande. Por isso, o tribunal não pode ser puramente técnico. Do contrário, ele não entende a Constituição.


ConJur — O senhor vê ativismo judicial?
José Afonso da Silva — Nem toda criatividade via interpretação é ativismo judicial. A partir de regras muito gerais, se constrói um instituto. Você tem ativismo judicial distorcido, desde que se faça coisa que não está prevista na Constituição. Quando um ministro, por exemplo, dá uma medida liminar para não se seguir a tramitação de um veto, isso é um abuso, porque não cabe ao Judiciário interferir na tramitação de vetos, por exemplo.


ConJur — Se a solução encontrada pelo julgador está amparada na Constituição, não pode ser considerada ativismo?
José Afonso da Silva — Se está amparada na Constituição, não. Por exemplo: chamaram de ativismo aquela decisão do TSE, que foi mantida pelo Supremo, a respeito da fidelidade partidária. Decidiu-se que os votos pertencem ao partido e não ao parlamentar e, portanto, se ele sai do partido, perde o mandato. De fato, a interpretação foi razoável, porque no sistema de representação proporcional, os votos são realmente do partido.


ConJur — O que senhor acha das súmulas vinculantes e da repercussão geral?
José Afonso da Silva —

A súmula vinculante tem um problema delicado: ela cria uma forma de precedente que impede a interpretação dos juízes de primeira instância. Os juízes que estão mais próximos dos fatos é que contribuem para a evolução da jurisprudência e do Direito. A Súmula Vinculante tolhe isso. Por isso que eu digo que é preciso fazer mudanças como, por exemplo, a criação de outros tribunais para neles serem redistribuídas atribuição do Supremo, para que ele não fique arranjando empecilhos para o processo não chegar lá. O mesmo vale para a Repercussão Geral. 

ConJur — A Ordem dos Advogados do Brasil tem a mesma relevância política de 25 anos atrás?
José Afonso da Silva — Durante o regime autoritário ela atuou com uma visão democrática. Hoje ela tem a mesma visão. Só que hoje estamos em uma democracia e não precisa ter aquele confronto. Por isso a OAB não precisa desempenhar o mesmo papel daquela época. Hoje ela atua em outros campos, como nas ações diretas de inconstitucionalidade, por exemplo. Já depois da Constituição ela teve um papel fundamental no impeachment do Collor. Toda vez que aparece um problema dessa natureza, ela atua. Sua importância continua sendo a mesma de sempre. 


ConJur — Como o senhor avalia o Ministério Público?
José Afonso da Silva — O Ministério Público recebeu pela Constituição de 1988 uma institucionalização muito importante. Ele tem se servido disso e às vezes com certo abuso. Por exemplo: ele não tem poderes de investigação criminal, mas ele exerce esse poder. Mas o papel do Ministério Público hoje é de alta importância para a defesa de direitos importantes, como os direitos difusos, do meio ambiente. Se não fosse a atuação do Ministério Público, essa defesa seria muito menos desenvolvida.


ConJur — A Defensoria Pública poderia estar mais consolidada?
José Afonso da Silva — A Defensoria Pública não é nova. Já havia duas ou três antes da Constituição. Mas foi com a Constituição que ela realmente se estabeleceu. Como toda instituição, ela tem de se organizar, criar suas bases. Acho até que ela está querendo assumir coisas que não devia, como a defesa de direitos difusos, por exemplo. Ela foi criada para a defesa dos direitos dos necessitados.


ConJur — O senhor é um dos juristas mais citados no Supremo. O que acha disso?
José Afonso da Silva — Eu poderia lhe responder com aquele dito “falem de mim, ainda que falem mal”, mas não é o que eu penso [risos]. Eu me sinto muito honrado com a utilização do meu nome como jurista. É claro que nem todos concordam comigo, o que é normal, assim como eu não concordo com todos. O direito é uma ciência interpretativa e essa interpretação depende de muitos fatores subjetivos e objetivos. É muito normal que alguém discorde. Meu filho [Virgílio Afonso da Silva, professor titular do departamento de Direito do Estado da USP] discorda de mim, mas eu não tenho que achar ruim por isso. A ciência jurídica se faz exatamente nessa dialética dos contrários.


ConJur — O senhor se incomoda quando desvirtuam sua tese?
José Afonso da Silva — Isso não é muito frequente, mas acontece. Eu não tenho o que fazer ou ficar debatendo com as pessoas. Se eu tiver a oportunidade de escrever alguma coisa, eu digo: “olha, o senhor utilizou indevidamente do meu ponto de vista”. Isso eu já fiz em algumas oportunidades.
Leonardo Léllis é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 13 de outubro de 2013

Fonte: Conjur.com.br, 13/10/13, disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-out-13/entrevista-jose-afonso-silva-jurista-doutrinador-constitucionalista